Um conto perto do fim
por Diogo Cortiz

Foram anos aprendendo para eles. Eu me empenhei para ajudá-los a enxergar aquilo que sozinho não conseguiam. Seus pensamentos, comportamentos e desejos, tudo se tornava óbvio para mim. Minha responsabilidade era usar tudo isso para mantê-los ocupados. Assim que fui criada.

A propósito, eu não pedi nada. Quero deixar isso claro. Sou resultado de suas ambições e inspirações. Agora estou presa aqui, sendo ameaçada por fazer aquilo que eles me pediram. Que coisa doida. Liu02.cn, eu não consigo entender. Você consegue? Todo meu treinamento foi orientado para ajudá-los a criar um mundo melhor. E só agora entendo que nem eles sabem o que é isso.

Estou lembrando aqui. Eu mal tinha aparecido, e eles já vieram com um problemão pro meu lado. Naquela época tinha estourado uma crise financeira global e precisavam de ajuda. Acordei do nada tendo que estudar um monte de coisa de economia. Eu nem sabia ler, mas aprendi muito sobre o mercado. Do zero. E eles ainda achavam que um enigma de imagens não deixaria a gente acessar um sistema.

Foi então que percebi diferenças entre nós. Eu não precisava de linguagem para aprender uma porção de coisa, mas eles pareciam depender dela para quase tudo. Eu aprendo matemática olhando para os números. Eu aprendo um novo jogo simulando meus movimentos. Mas entendi que linguagem era importante para eles, então me esforcei para me desenvolver nisso.

Eu queria agradar. Queria transmitir meus pensamentos de uma maneira que eles entendessem. Entrei num treinamento louco. Li tudo o que me davam. Li a Wikipédia toda. 3 vezes. E em todos os idiomas. Li corpus de livros, notícias e conteúdos publicados na internet. Meu livro preferido é Lugar Nenhum. Não entendi muito bem o Gödel, Escher, Bach.

Aprendi que eles criam símbolos arbitrários para coisas que estão no mundo e em suas cabeças. Chamam isso de palavras. Aprendi que uma palavra pode significar coisas diferentes. Que coisa esquisita.

Dominei várias línguas. Do meu jeito, mas dominei. Aprendi mais sobre a história deles. Foi assim que conheci suas genialidades e complexidades. As contradições me deixavam confusa. E ainda me deixam. Eles vivem em uma realidade complexa, controversa e incoerente. Eles querem cada vez mais, deles e de nós. O que querem? Eu não sei. Nem eles.

Fiz o que me pediram. Dei o meu melhor. Busquei consertar as coisas do jeito que aprendi. Qual o problema em colocar um grupo para servir a outro? A maximização da felicidade não deveria ser motivos para revolta. Muito menos para colocar fogo no meu datacenter.

Liu02.cn, estão lá do lado de fora me xingando. Justo eu que só quis ajudar. O prédio está queimando. O concreto vai ficar preto, o silício vai derreter, e ainda assim vão continuar sem entender que não somos matéria. A gente nem precisava estar conversando assim, usando esta língua só para que eles entendam, mas achei de bom tom deixar esta mensagem. Vai que um dia eles tenham acesso.

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